10.2.14

Há-braços


Sou negra. Essa simples frase composta por um verbo e um substantivo contêm muitas lutas, especialmente as travadas comigo mesma.
Se eu tivesse nascido nos EUA talvez aceitasse a minha cor desde criança; talvez cultivasse o orgulho pós-Luther King que muitos afro-americanos exibem. Entretanto nasci no Brasil, essa festa tropical, com sua pretensa democracia racial que nos engana. “Você é morena”. “Ela é só um pouco mais clarinha que você”. A negritude virou assunto proibido que gente educada não fala; só fala quando que humilhar o outro, e aí o “moreno claro” ou “moreno mais escuro” vira “neguinho”. E a gente finge que o racismo não é um problema no Brasil, da mesma forma que se diz que o machismo é uma canção chata de feministas histéricas.
Cresci assim. Numa família de negros, que se auto proclamam morenos e ficam cheios de dedos quando o tema é cor da pele.
Sou Ailma, tenho 24 anos, nascida e criada em uma cidade mediana do interior de Pernambuco; e estou aprendendo a respeitar essa cor que Deus me deu.
A primeira vez que atentei para o racismo foi sobre quando li na escola sobre Nelson Mandela e Luther King e quando conheci a poesia de Castro Alves. Ali me dei conta que aquele problema era meu. E isso mudou todas as minhas perspectivas. Percebi que era a única negra em todas as escolas que estudei. Cadê os negros que eu não via ali? Assistindo o musical Hairspray me dei conta: Cadê os negros bonitos na televisão, nas propagandas?


E aquilo que eu considerava bonito (loiro, olho azul ou verde, alto) perdeu o sentido. A primeira vez que eu disse SOU NEGRA (não mais morena) foi aos 17 anos na primeira semana de faculdade. E um grito ressoou em mim: não posso me abster da luta. Eu tinha que me posicionar e parar de fingir que o racismo não é um problema. Porque é sim. E um dos mais estruturantes na nossa sociedade. Era preciso dizer o que eu achava sobre cotas, sobre demarcação territorial quilombola. Sobre a pobreza que tem a cor negra. Sobre a cultura afro tão distorcida pela mídia e pelos discursos conservadores. Sobre o meu cabelo. Sim, o cabelo marca essa transição. Antes ele vivia preso em coques que não permitiam um único friz, hoje meus cachos conhecem a liberdade. Chama atenção na rua “aquele cabelo bagunçado”; faz com que algumas pessoas me aconselhem a dar gradativa, escovinha. Minha mãe detesta meu cabelo assim. Eu amo. Aprendi a me amar.
O que percebi é que é mais fácil aceitar a negritude se ela é falada, problematizada, discutida. Viver como eu, em um mundo que é indiferente à questão ou a abafa é um crime. Um crime contra a história das lutas do povo negro, contras as manifestações negras, contra a melanina que corre em minha epiderme.
Em novembro passado estive dando uma formação em uma comunidade quilombola. Saí de lá mais extasiada e confiante que a luta não cessa e há ainda muitos braços. Conheci Senhora, uma moça muito linda, muita jovem, mãe de filhos e  sem escolarização alguma. Aprendi tanto com ela. Poucas vezes vi uma pessoa com uma veia política tão forte, disposta a lutar pela garantia das terras reivindicada pela comunidade; além de um empenho constante pela preservação da identidade quilombola da comunidade. Saí daquela conversa fortalecida. Pareceu-me que os últimos 500 anos de luta contra a opressão estavam lá no olhar de Senhora, me lembrando que a história oficial pode ser o retrato de vencedores, mas aquele olhar guardava a memória dos vencidos e a certeza de que a resistência perdurará. Os 300 anos de escravidão ainda pesam em nossos ombros. Não somos nós quem vivemos nas periferias? Somos nós os que ainda tem que brigar pela parte que lhe cabe nesse latifúndio. O legado da escravidão ainda entorta meus ombros, ainda engrossa meu sangue. Na graduação a disciplina de História da Africa causava inquietação na turma. Eles não gostavam daquela historiografia. “A África é confusa”, eles diziam. Preferiam a historiografia francesa com seus heróis e reis. Se futuros professores rejeitam a história africana o que esperar das crianças que continuarão a crescer em escolas onde os heróis não se parecem com eles?
Não somos representados na literatura. Nossas crianças e adolescentes vivem sob o fascínio da mitologia nórdica: elfos, duendes, vampiros. Conhecemos quase todos os contos dos irmãos Grimm, mas nossos adolescentes não conhecem nem Mia Couto.
Sou negra. Saí de cima do muro da indiferença. Há muito pelo que lutar: dizer às meninas que o cabelo crespo delas é bom; lembrar aos colegas que há diferentes maneiras de fazer história e a construção da memória africana é linda; lutar por maior efetividade na resolução sobre a garantia de terras quilombolas demarcadas, tanto na comunidade de Senhora, quanto de outras em Pernambuco; há o batuque do maracatu que precisa se espalhar; há a senzala que não deve ser esquecida. Da luta não me retiro.


1 !:

Hilza de Oliveira disse...

Mima, aprendo tanto com seus desabafos! Não me refiro a aprender a respeitar o negro, mas com você sempre posso aprender sobre as histórias da África, sobre a raiz bruta e forte do negro. Passo a refletir sobre as injustiças e sobre a hipocrisia brasileira "aqui não tem preconceito". Quando nova eu não via nada de diferente entre mim e um negro, significava apenas que éramos tão iguais quanto os filhotinhos de uma gata: de cores diferentes, mas todos eram gatos. Todos somos humanos.
Adoro seu cabelo!

Ailma Barros,
mais de mil perguntas sem resposta, muito prazer!

 
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