12.1.15

quando o conto de fadas se realiza.

 Essa “alegria” que selecionei como a marca do verdadeiro conto de fadas (ou romance), ou como sua chancela, merece maiores considerações. Provavelmente todo escritor que faz um mundo secundário, uma fantasia, todo subcriador, deseja em certa medida ser um criador de verdade, ou pretende estar se baseando na realidade: acha que a qualidade peculiar desse mundo secundário (se não todos os detalhes) seja derivada da Realidade, ou flua para ela. Se conseguir de fato uma qualidade que possa ser descrita honestamente pela definição de dicionário: “consistência interna da realidade”, é difícil conceber como isso poderá acontecer se a obra não tiver algumas características da realidade. A qualidade peculiar da “alegria” na Fantasia bem-sucedida pode portanto ser explicada como um repentino vislumbre da realidade ou verdade subjacente. Não é apenas um “consolo” para o pesar do mundo, mas uma satisfação, e uma resposta à pergunta: “É verdade?” A resposta que dei inicialmente a essa foi (muito corretamente): “Se você construiu bem seu pequeno mundo, sim; é verdade nesse mundo.” Isso basta ao artista (ou à parte artista do artista). Mas na “eucatástrofe” enxergamos numa breve visão que a resposta pode ser maior – pode ser um lampejo longínquo ou eco do evangelium no mundo real. O uso dessa palavra dá uma indicação de meu epílogo. É um assunto sério e perigoso. É presunção minha tocar nesse tema; mas, se porventura o que digo tiver alguma validade sob algum ponto de vista, é claro que é apenas uma faceta de uma verdade incalculavelmente rica, finita somente porque é finita a capacidade do Homem para quem isso foi feito. Eu me arriscaria a dizer que, abordando a História Cristã deste ponto de vista, por muito tempo tive a sensação (uma sensação alegre) de que Deus redimiu as corruptas criaturas-criadoras, os homens, de maneira adequada a esse aspecto da sua estranha natureza, e também a outros. Os Evangelhos contêm um conto de fadas, ou uma história de tipo maior que engloba toda a essência dos contos de fadas. Contêm muitas maravilhas – peculiarmente artísticas, belas e emocionantes, “míticas” no seu significado perfeito e encerrado em si mesmo; e entre as maravilhas está a maior e mais completa eucatástrofe concebível. Mas essa história entrou para a História e o mundo primário; o desejo e a aspiração da subcriação foram elevados ao cumprimento da Criação. O Nascimento de Cristo é a eucatástrofe da história do Homem. A Ressurreição é a eucatástrofe da história da Encarnação. Essa história começa e termina em alegria. Tem preeminentemente a “consistência interna da realidade”. Nunca se contou uma história que os homens mais quisessem descobrir que é verdadeira, e não há nenhuma outra que tantos homens céticos tenham aceito como verdadeira por seus próprios méritos. Pois a Arte dela tem o tom supremamente convincente da Arte Primária, isto é, da Criação. Rejeitá-la leva à tristeza ou à ira. Não é difícil imaginar a peculiar exaltação e alegria que sentiríamos se algum conto de fadas especialmente belo se revelasse “primordialmente” verdadeiro, se sua narrativa fosse história, sem com isso necessariamente perder o significado mítico ou alegórico que tinha. Não é difícil, pois não se é obrigado a tentar conceber algo de qualidade desconhecida. A alegria seria exatamente da mesma qualidade, se não do mesmo grau, como a alegria proporcionada pela “virada” em um conto de fadas; uma tal alegria tem o próprio sabor da verdade primária. (Do contrário seu nome não seria alegria.) Ela olha para a frente (ou para trás: neste contexto a direção não importa) na direção da Grande Eucatástrofe. A alegria cristã, a Gloria, é da mesma espécie; mas é preeminentemente (infinitamente, se não fosse finita nossa capacidade) elevada e jubilosa. Mas essa história é suprema; e é verdadeira. A Arte foi verificada. Deus é o Senhor, dos anjos, dos homens – e dos elfos. A Lenda e a História encontraram-se e se fundiram. Mas no reino de Deus a presença do maior não deprime o pequeno. O Homem redimido continua sendo homem. A história, a fantasia ainda prosseguem, e devem prosseguir. O Evangelium não ab-rogou as lendas; ele as consagrou, em especial o “final feliz”. O cristão ainda precisa trabalhar, com a mente e com o corpo, sofrer, ter esperança e morrer; mas agora pode perceber que todas as suas inclinações e faculdades têm um propósito, que pode ser redimido. É tão grande a generosidade com que foi tratado que talvez agora possa, razoavelmente, ousar imaginar que na Fantasia ele poderá de fato ajudar o desabrochamento e o múltiplo enriquecimento da criação. Todas as histórias poderão tornar-se verdade; e no entanto, finalmente redimidas, poderão ser tão semelhantes e dessemelhantes às formas que lhes damos quanto o Homem, finalmente redimido, será semelhante e dessemelhante ao decaído que conhecemos.

Tolkien no livro Árvore e Folha

Ailma Barros,
mais de mil perguntas sem resposta, muito prazer!

 
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