19.5.14

as crioulas de conceição


Ou ainda: quilombola, sertaneja, militante e boneca


Talles sempre me dizia que as sociedades matriarcais ou matrilineares estavam fadadas ao fracasso. Ele usava mil teorias pseudo-darwinianas para me convencer que a sobrevivência só existe no patriarcalismo. Eu rebatia. E dizia que há sociedades matrilineares e matriarcais que não conhecemos ainda. Claro que há. Em algum lugar. Eu precisei terminar a faculdade e começar meu trabalho quixotesco de desfazer injustiça nas estradas a fora de Pernambuco para descobrir que a teoria de Talles não correspondia a realidade. Conheci algumas comunidades tradicionais (indígenas e quilombolas) e ainda que não totalmente matriarcais, conheci grupos liderados por mulheres, e com um nível de articulação e mobilização local que as cidades ainda não conseguiram se pensarmos em participação coletiva nos espaços de deliberação.
Foi num atalho, um desvio da BR, numa estrada de terra longa e difícil que conheci Conceição das Crioulas, comunidade quilombola situado no interior de Salgueiro, sertão pernambucano. E poxa, que sorte! 
Conceição das Crioulas é um território quilombola que luta bravamente pelo reconhecimento, posse da terra e melhoria de qualidade de vida. Segundo a tradição local, a comunidade foi fundada por seis crioulas que compraram as terras com dinheiro do próprio esforço ainda no "tempo dos reis". Com uma narrativa fantástica, o único ano de fato marcado para os remanescentes da seis crioulas é 1802, data da compra e registro das terras. Com a ajuda da senhora Conceição, nasceu a comunidade, que ao contrário de outros grupos quilombolas não foi o resultado de resistência e sim de uma transação comercial possível graças ao esforço de seis crioulas (uma delas, a Francisca, é representada por essa bonequinha da blusa verde). O objetivo coletivo atual dos 4 mil quilombolas é "ter liberdade de expandir seus domínios levando com orgulho a sua arte para além da caatinga cercada de xique-xiques."
 Conceição das Crioulas é um exemplo para outros grupos quilombolas de Pernambuco no que diz respeito à militância, a luta e as conquistas (mesmo que pequenas), especialmente pela mobilização possibilitada pelo artesanato local. Conceição tem lideranças masculinas e no entanto toda sua força de articulação está com as mulheres. São elas as líderes, as inspirações, os símbolos de luta espalhados na comunidades. A voz que invade os gabinetes municipal e estadual é feminina. As mãos calejadas são de mulher. A decisão, a capacidade de juntar gente e decidir.  A fonte de renda. A educação das crianças. As decisões sobre as ações da comunidade. Tudo isso tem uma marca crioula. Tudo isso tem a marca das mulheres devotas de Conceição. Aquele é um reino de rainhas. E apesar da pobreza, da distância e do descaso do Estado há um senso de coletividade, de participação política, de mobilização social. Há uma urgência de conhecimento. Há uma sede por melhorar. Há um jeito jeitoso de organizar a vida coletiva. Há mulheres no comando. E não estou sendo sexista dizendo se é melhor ou pior. Estou apenas ressaltando que é possível e que o sexo pouco importa para ser líder. As crioulas de Conceição me ensinam isso. É preciso proatividade, preparação, mobilização, solidariedade, e isso elas tem. Inclusive além de rainhas de seu território, as mulheres de Conceição se tornaram bonecas e vão na contramão da Barbie. Não é preciso ser loira, magra e fútil para ser boneca. Sendo negra e batalhadora também pode-se tornar boneca.
Há em Conceição uma tradição de homenagear as líderes locais transformando-as em bonecas para artesanato. Segundo o próprio povo, cada boneca " representa uma personagem marcante da história desse povo que soube a partir da união vencer grandes desafios e que continua forte e atuante na luta das comunidades quilombolas". O processo de construção das bonecas é coletivo e maravilhoso. Os jovens definem e desenham quem, pela trajetória de vida pessoal e comunitária, pode ser boneca; os artesãos produzem; elas ficam lisonjeadas. Porque são crioulas e são bonecas guerreiras. Delicadas e batalhadoras. Porque mulher bonita é a que luta!


Quando eu crescer quero ser boneca e batalhadora como as negras de Conceição, quero ser bonita porque luto, quero ser útil à coletividade.

"Mujer linda es la que lucha y no se calla,
bella la hacen sus ideas y no sus pechos,
bonita es la  que batalla tras batalla
no se cansa de pelear por sus derechos."


1 !:

Jennifer Dias disse...

Ô Pernambuco. <3

Ailma Barros,
mais de mil perguntas sem resposta, muito prazer!

 
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