6.6.14

Atlântida

A terra será outra, as pedras serão outras, o céu é o mesmo com outras nuvens.
Cada cidade tem sua particularidade. Cada cidade tem beleza escondida numa rua esquecida. Cada cidade tem identidade e divide com as pessoas essa identidade. Deleuze criou um termo muito legal para o que vou falar neste post: terriorialização. A territorialização diz respeito ao território (a terra propriamente dita) mas extrapola e fala também sobre construção simbólica, produção de identidade, relações e saberes num determinado lugar. Por isso é tão difícil ser refugiado, porque não se perde apenas a terra em que se mora, mas também todos os referenciais históricos, sociais e identitários.
Ok, ok, mas para que essa aula troncha de conceito sociais?
Para falar de Santa Maria da Boa Vista e as reações que ela provocou em mim essa semana.
Sta Maria fica no sertão pernambucano, a uma hora  e meia de distância de minha cidade. Já estive lá diversas vezes. Mas dessa vez foi especial. Nessa minha vida de trabalho na estrada, fizemos uma parada para almoço em Sta Maria. Almoçamos um filé de peixe na beira do Rio São Francisco e eu concordávamos que a cidade era muito bonitinha, toda antiga e com uma apresentação exuberante do rio. De repente me peguei pensando que daqui a uns anos aquilo tudo vai desaparecer. Boa parte da cidade ficará submersa por causa da construção de uma barragem. Por acaso toda a parte histórica e de lazer da cidade desaparecerá. Outros lugares serão construídos para deslocar os moradores, mas essa Sta Maria simplesmente desaparecerá.  Comecei a pensar em quantas histórias, quantos sonhos, quantos amores e quantas tristezas não serão submersas. Pensei que as casas antigas, o coreto, a casa dos telégrafos, e tudo que o que foi feito antes de 1930 será apenas memória. Mais uma vez o progresso atropela a identidade.
Há diversos relatos onde cidades deslocadas não se recuperam identitariamente. Uma delas aqui em Pernambuco tem o maior índice de suicídio do estado e a explicação mais plausível é não reconhecimento de pertença a esse território.
Estamos vivendo em Pernambuco tempos de progresso exacerbado. Muitas pessoas estão sendo retiradas de suas casa e seus espaços de sociabilidade para a construção de ferrovias, barragens, portos, prédios e mais prédios. São tantos relatos tristes de pessoas sentiram para sempre saudade de casa. Um movimento muito forte de defesa de um espaço identitário acontece em Recife nesses tempos. O movimento #OcupeEstelita luta para que a área do cais do Recife não se transforme em mais um amontoado de prédios cinzas. Eles querem sua cidade, com seus elementos, suas características.
Há muitas Atlântidas brasil a fora. Há muitos desterrados. O direito a territorialização é todos os dias feridos nesse país e sem saber produzimos nossos próprios refugiados. Pessoas sem referências, sem lembrança, sem o lugar que brincavam na infância e onde tiveram o primeiro beijo e onde aconteceu isso e aquilo. Temos tanta gente que se contenta com um lugar que é só uma terra que nada lhe diz, que não se comunica.
A terra pertence a gente e de alguma maneira, pertencemos a terra também.
Voltei triste, uma terra muito bonitinha será apenas lembrança.

Ailma Barros,
mais de mil perguntas sem resposta, muito prazer!

 
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