2.3.11

Sobre as aventuras


Eis o que pensei: para que o mais banal dos acontecimentos se torne uma aventura, é preciso e basta que nos ponhamos a narrá-la. É isso que ilude as pessoas: um homem é sempre um narrador de histórias, vive rodeado por suas histórias e pelas histórias de outrem, vê tudo o que lhe acontece através delas; e procura viver sua vida como se a narrasse.
Mas é preciso escolher: viver ou narrar.  (...)
Quando se vive nada acontece. Os cenários mudam, as pessoas entram e saem, eis tudo. Nunca há começos. Os dias se sucedem aos dias, sem rima, nem solução: é uma soma monótona e inteminável. De quando em quando se procede a um total parcial, dizendo: faz três anos que viajo. Também não há fim: nunca deixamos uma mulher, um amigo, uma cidade de uma só vez. E também tudo se parece: Xangai, Moscou, Argel, ao fim de uma quinzena é tudo igual. Por alguns momentos - raramente - avaliamos a situação, percebemos que nos envolvemos com uma mulher, que nos metemos numa confusão. Por um átimo. Depois disso o desfile recomeça, voltamos a fazer as contas das horas e dos dias. Segunda, terça, quarta. Abril, maio, junho. 1924, 1925, 1926.
Viver é isso. Mas quando se narra a vida, tudo muda; simplesmente é uma mudança que ninguém nota: a prova é que se fala de histórias verdadeiras.

Jean Paul Sartre in A náusea.

Ailma Barros,
mais de mil perguntas sem resposta, muito prazer!

 
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