28.8.10

Chapéu-coco, saia de pregas

É o parque em inverno de muitos verdes, de: pipoca, algodão-doce, cata-vento. Estamos envoltos em lã. Alguém toca realejo.
Vemos - que o moço de chapéu - coco senta-se a um canto, a outro a moça de saia de pregas. Ignoram-se. Ambos escondem cinzas, poucas, no coque e  sob o chapéu. Têm o rosto cansado, mas sereno.
E sabemos - que o moço, matemático, perdeu a mulher pra cantor (de boleros). Às vezes, chora. Não tem vícios. Gosta de carrosséis, à noite. Cultiva cravos.
A moça nunca arranjou marido. É enfermeira (mas quis ser trapezista). Quer filha, pra chamar de Alice. Sente frio
Se o moço visse a moça, se a moça visse o moço, haveria comoção, queda de amores. Piscariam os grandes olhos tépidos. O moço daria a moça o cravo em sua lapela, seu negríssimo sobretudo. Mentiria - que é muito poeta, tocador de acordeão.
A moça estenderia a mão com a luva, tentaria sorriso nunca usado. Saberiam, ambos. Dar-se-iam o medo de que o outro morresse, fugisse - o acender de luzes pra ver se o outro tem um corpo, e dorme.
Se vissem, se apenas vissem, ela seria Mafalda, ele Armando, de sobrenome mesmo. Assinaram papéis. Na boda, Mafalda usaria lilás, já tão cheia de Armando, de Alice: Alice seria frágil, de doçura tanta... Teimaria em andar descalça (menina, nesse chão gelado!), enquanto a mãe lhe tricotassem longas meias, e para o pai um cachecol vermelho.
Se, apenas se, iriam ao circo, andariam de carrocel, à noite - Alice sorrindo, sem os dentes da frente. Seriam três, por aí, tão juntos (cuidado com vento, os carros, o sangue, os insetos). Seriam três, e a certeza de um beijo, se o quisessem, e não respirar sozinho.
Mas eis que chega a hora de partimos. É cada vez mais tarde. O moço, que tinha nas mãos o chapéu - coco, devolve-o à cabeça. A moça ajeita a saia de pregas. Levantam-se.
E caminham, os dois, para ruas opostas, na direção de muitos prédios.

- Ana Santos no livro O que faltava ao peixe.

Ailma Barros,
mais de mil perguntas sem resposta, muito prazer!

 
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